quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Os nossos hospitais e o caos nas urgências (I)

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Tendo procurado inteirar-me sobre toda a polémica existente nas últimas semanas a propósito do caos existente nas urgências dos hospitais, consegui encontrar  explicações  esclarecedoras da parte daqueles que pesquisam seriamente sobre este assunto, para bem de todos nós, e que passo a transcrever (in observador.pt EXPLICADOR a 11.01.2018):

"O que se está a passar nos hospitais?

Pergunta 1 de 9
As queixas não são novas e várias denúncias têm vindo a público nos últimos meses, mas esta polémica em torno de fotografias que mostram o caos nas urgências hospitalares em alguns hospitais de Portugal estalou no último fim de semana, quando um grupo de enfermeiros da urgência do Hospital de Faro denunciou publicamente a incapacidade de resposta daquele serviço. Segundo a denúncia pública, que veio acompanhada por fotografias das urgências sobrelotadas com dezenas de doentes deitados em macas acumuladas por vários espaços do hospital, a situação é de “caos” e pode levar a “consequências nocivas” para doentes e familiares.
Número de profissionais insuficiente, escassez de material e falta de espaço, denunciam os enfermeiros, estão a levar à “diminuição da qualidade assistencial” e à “progressiva degradação” da capacidade de resposta às adversidades, fazendo com que haja um número crescente de utentes internados em macas nas urgências e que os doentes esperem cada vez mais para serem atendidos naquele serviço.
Na sequência da denúncia, a Ordem dos Enfermeiros veio publicamente aplaudir a “coragem” e “manifestar o seu apoio aos enfermeiros do Algarve que denunciaram publicamente, com a divulgação de fotografias, o caos na Urgência do Hospital de Faro”. Mais: a Ordem apelou aos enfermeiros de todo o país que seguissem “o exemplo dos colegas de Faro na denúncia das situações que põem em causa a dignidade humana”.
Na segunda-feira, o Observador noticiou mais uma denúncia, relativa ao Hospital de Guimarães. Fotografias tiradas por enfermeiros daquela unidade na altura do Ano Novo mostravam várias macas aglomeradas numa zona de receção e triagem. Os enfermeiros queixam-se da falta de capacidade — humana e material — para atender os doentes em pleno pico da gripe.
A administração do hospital veio de imediato negar as acusações, justificando que as fotografias “estão com ângulos muito apertados e não é possível constatar, de forma fiável, o local em causa”. A denúncia levou mesmo o administrador daquele hospital, Delfim Rodrigues, a acusar a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, de incentivar à violação do “direito à privacidade dos doentes” ao apelar às denúncias.
Depois de Faro e Guimarães, também enfermeiros de Leiria denunciaram a falta de condições naquele hospital. Numa fotografia tirada por profissionais daquela unidade, a que o Observador teve acesso, é possível ver uma zona do serviço de urgências que em condições normais é ocupada por cadeirões e que serve como zona de passagem, repleta de macas com doentes.
Os enfermeiros de Leiria denunciam que há falta de profissionais — enfermeiros e auxiliares — para fazer face à grande afluência de doentes neste período, mas também falta de material de medicação, uma situação que já se repete há vários anos. Ao mesmo tempo, referem que há muitos doentes a serem escondidos quando há visitas de membros do Governo à unidade, acusação que a própria bastonária da Ordem dos Enfermeiros tem feito repetidamente.
O Conselho de Administração do Hospital de Leiria respondeu às denúncias, explicando que se trata de “uma situação de emergência” e que “como tal deve ser encarada”. Colocando o problema no excessivo recurso às urgências por parte dos utentes, o Conselho de Administração daquele hospital sublinha que “os edifícios e os quadros de pessoal não ‘esticam’ à medida dos picos de procura”.
Também no hospital de Abrantes, integrado no Centro Hospitalar do Médio Tejo, há denúncias de falta de capacidade para atender doentes nas urgências durante o pico da gripe. Uma reportagem da RTP no local mostra dezenas de doentes em macas amontoadas pelos corredores, e regista o descontentamento de enfermeiros e dos utentes, que chegam a esperar mais de dez horas pelo atendimento.
Fonte da administração do Centro Hospitalar do Médio Tejo disse ao Observador que “não existem doentes em macas fora do espaço da Urgência”, sendo que “os que se encontram em maca estão em observação clínica, a fazerem exames ou a aguardar resultados de exames”. A mesma fonte garantiu que o plano de contingência, que passou pelo reforço das equipas e pela implementação das chamadas consultas abertas (consultas não programadas) está a ser suficiente para gerir o aumento da afluência hospitalar.
No final de dezembro, ainda antes das primeiras denúncias fotográficas, já o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, admitia a existência de situações caóticas em alguns hospitais. Na urgência do hospital de Vila Nova de Gaia, chegou a haver 24 pessoas internadas, o que é “caótico”, na opinião do bastonário.
Mas o maior problema será mesmo no Algarve. “Faro tem problemas gravíssimos, há muito. Inclusive tem escalas de médicos incompletas e muitas vezes só asseguradas por internos”, disse Miguel Guimarães à agência Lusa, em dezembro. “Está a acontecer mais uma vez o que já aconteceu em anos anteriores”, acrescentou, considerando que “falhou o plano de contingência definido pela Direção-geral da Saúde”.

É só por causa da gripe?

Pergunta 2 de 9
O pico da gripe, registado anualmente por esta altura, aumenta naturalmente a afluência aos serviços de urgência dos hospitais. Mas há outros fatores que provocam as enchentes nas urgências na época do frio. Por um lado, a população portuguesa, maioritariamente envelhecida, está especialmente exposta a agravamentos nas condições de saúde provocados pelo tempo frio. Por outro lado, explicam vários responsáveis ao Observador, há ainda pouca confiança nos serviços de saúde de proximidade, como os centros de saúde, o que leva a que uma grande parte da população portuguesa siga para as urgências do hospital sempre que tem um problema de saúde.
“Os doentes não têm o hábito de ir ao centro de saúde, vão logo ao hospital. Em Lisboa, por exemplo, as pessoas nem sabem qual é o seu centro de saúde”, diz o presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, ao Observador. Mesmo que o serviço seja menos eficiente, devido à elevada procura: “As pessoas preferem esperar 12 horas numa urgência hospitalar do que serem atendidas em meia hora num centro de saúde. Isto não invalida que a resposta nas urgências tenha de ser otimizada, mas temos doentes com comuns constipações que podiam ou repousar em casa ou receber atendimento no centro de saúde e que vão para as urgências”.
O mesmo considera Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. “Os hospitais só deviam dar resposta à doença aguda”, explica a dirigente sindical, sublinhando que é preciso construir “a necessária confiança” nos serviços de proximidade. “A maior parte das pessoas nos nossos serviços hospitalares não estão em situação aguda.Deviam ter ido ao centro de saúde, ter tido as respostas e ter sido encaminhadas para casa”, defende.
Este “hábito cultural”, como lhe chama Alexandre Lourenço, evidencia-se na época de maior frio, em que a gripe — mas também outras complicações provocadas pelo frio, sobretudo nos mais velhos — leva milhares de pessoas a procurar assistência médica e a fazê-lo nas urgências hospitalares, que rapidamente chegam a níveis de afluência acima da sua capacidade de resposta.
Marianela Ferreira, investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, destaca que na origem deste problema está “uma questão de fundo que nunca foi clarificada junto dos utentes” do Serviço Nacional de Saúde: “O hospital, enquanto instituição de saúde, ainda permanece na população com uma posição de maior credibilidade. As pessoas preferem ir à urgência porque vão encontrar um médico de um hospital, que consideram que é mais capacitado do que um médico de família, que passa os exames e as receitas, mede a tensão e pouco mais”.
Para a investigadora, “as pessoas não têm uma relação de confiança com o SNS, que passaria por privilegiarem em primeiro lugar o médico de família e o centro de saúde, por seguirem os conselhos referentes à vacinação, e muito mais”. “O que aconteceu de mal em termos comportamentais por parte dos utentes — se vão ou não ao médico de família, se vacinam ou não, é um reflexo do mau funcionamento do SNS. Há anos que a figura do médico de família existe, mas o SNS ainda não fez entender que é fundamental que a primeira pessoa a que se recorre seja ele”, afirma.
O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, concorda. “Esta situação agora da gripe, mais do que nos dar dados sobre a gripe, está-nos a mostrar as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde”, diz ao Observador.

É assim todos os anos? Ou este ano está particularmente mais grave?

Pergunta 3 de 9
É assim todos os anos. Sempre que chega o inverno, as urgências dos hospitais enchem-se de doentes com gripe ou com outras complicações devidas ao tempo frio. Aliás, nem sequer há informação que permita afirmar que este ano a situação está a ser particularmente mais grave do que em anos anteriores.
No que toca à gravidade da gripe deste ano, não há evidência de que seja mais ou menos grave do que nos anos anteriores — os boletins divulgados regularmente pelo Instituto Ricardo Jorge revelam números na linha do que tem acontecido noutros picos gripais. Relativamente à afluência às urgências, os dados em tempo real do Portal do SNS mostram uma média a rondar os 19 mil atendimentos por dia, tal como em janeiro do ano passado.

O que falta nos hospitais? Enfermeiros, médicos, material, espaço?

Pergunta 4 de 9
A falta de enfermeiros nos hospitais portugueses tem sido o principal motivo dos protestos, greves e denúncias por parte destes profissionais, que garantem não haver enfermeiros suficientes para garantir um atendimento de qualidade às populações — sobretudo em picos de afluência. A Ordem dos Enfermeiros tem dito repetidamente que faltam em Portugal cerca de 30 mil enfermeiros para colocar Portugal na média dos países da OCDE.
De acordo com as estatísticas da OCDE, existem atualmente em Portugal 6,3 enfermeiros por cada mil habitantes. A média dos países que compõem a organização situa-se nos 9,1 enfermeiros por mil habitantes. Mas há países com muito mais profissionais por cada milhar de habitantes, como a Islândia (15,4), a Noruega (17,3) ou a Suíça (17,9).
No que toca aos médicos, há carências sobretudo em algumas regiões do país (Alentejo e interior) e em algumas especialidades (Cardiologia, Cirurgia Geral, Ginecologia/Obstetrícia, Medicina Interna, Ortopedia, Pediatria Médica, Psiquiatria e Urologia), como o Observador detalha neste artigo.
Os enfermeiros têm também denunciado carências no que diz respeito ao material necessário para o atendimento aos utentes, acusações que as administrações dos hospitais têm negado taxativamente. Em relação ao espaço para internamento, esta carência verifica-se sobretudo nos momentos de pico — aliás, os planos de contingência preveem inclusivamente a disponibilização de mais camas nos hospitais.
Mas o grande problema não será esse. Guadalupe Simões, do SEP, explica que “as camas nunca irão chegar enquanto apostarmos neste modelo essencialmente curativo”, e defende que é necessário apostar na flexibilização do acompanhamento dos doentes nos centros de saúde e em casa.

Qual a solução?

Pergunta 5 de 9
Uma “reconfiguração” do SNS, defende a investigadora Marianela Ferreira. “A população devia estar mais sensibilizada para a importância de não ir imediatamente à urgência, mas recorrer aos serviços de apoio 24 horas e recorrer ao médico de família”, explica, sublinhando que a solução tem de passar por “ouvir mais os profissionais” e por reconhecer “as competências da medicina familiar”.
“Há que dar às pessoas mais informação sobre o que é a medicina familiar e sobre a complementariedade entre as duas respostas — medicina familiar e os hospitais”, defende a investigadora, sublinhando que o problema atual com o pico da gripe é exemplo da “lacuna relativamente ao investimento que deve ser feito pelo SNS junto da população” em termos de informação.
“A Direção-Geral da Saúde tem feito um papel importante. Está todos os dias na comunicação social a divulgar, a promover a vacinação. Mas o SNS tem de se afirmar mais, tem de se mostrar mais, tem de se reestruturar mostrando, por exemplo, que tem vacinas disponíveis para os mais vulneráveis, que tem médicos de família habilitados, centros de saúde com condições, deve deixar muito clara a ideia de que não é necessário envolver os hospitais na questão da gripe”, defende Marianela Ferreira.
O presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, diz que a solução também passa por evitar que parte da população mais fragilizada necessite dos cuidados hospitalares. “Muitas pessoas que aparecem nas urgências são idosos descompensados porque não tomaram medicação que deviam ter tomado, muitas vezes porque não os conseguem comprar”, explica. Por isso, o responsável defende a “majoração da comparticipação de medicamentos, para que as pessoas tenham capacidade de os comprar e não vão parar às urgências com crises evitáveis”. A medida, considera, seria melhor do que subir generalizadamente as reformas para toda a gente.
Já para Guadalupe Simões, é necessário aproximar os cuidados de saúde das populações para poupar as urgências hospitalares. Contudo, diz a dirigente sindical, “os profissionais de saúde estão habituados a estar dentro das paredes dos hospitais” e que, por isso, “a discussão não será fácil”.
Também o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, partilha da mesma opinião. “O Ministério da Saúde e a Direção-geral da Saúde deviam ter começado há muito tempo uma campanha de habituação relativamente ao recurso aos cuidados de saúde primários”, disse esta semana à agência Lusa."
(continuação no meu próximo post)

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