terça-feira, 25 de março de 2014

"O comum dos mortais acha que o banqueiro rouba", opinião de João Ermida

João Ermida: "O comum dos mortais acha que o banqueiro rouba"
JOÃO ERMIDA: foto de José Carlos Carvalho (visão.pt)
"O cerco apertou-se mas a atitude de quem trabalha na alta finança ainda não mudou. Um ex-banqueiro explica porque é que o pior que pode acontecer a uma profissão é "não ser respeitada"

João Ermida: "O comum dos mortais acha que o banqueiro rouba"

O Dono do Mundo (Ed. Oficina do Livro) o novo romance de João Ermida, antigo responsável global da tesouraria e mercados financeiros do Banco Santander, é uma reflexão sobre a ganância dos banqueiros e a ausência de regras que lhes permite destruir e, de seguida, reconstruir a economia de um País, ganhando muito dinheiro. Aos 49 anos, este "banqueiro arrependido" conta como um dia entrou numa igreja, em Madrid, e decidiu pôr fim a uma carreira de 16 anos que lhe deu milhões a ganhar. Hoje, dedica o seu tempo a aconselhar financeiramente as famílias com elevado património, mas continua a sonhar com a criação de um banco ideal.
Os banqueiros aprenderam alguma coisa com a crise que teve início em 2007?
A atitude comportamental não se alterou muito. Os reguladores estão mais atentos, há uma pressão brutal dos bancos centrais, mas falta mudar a atitude das pessoas que trabalham nas instituições financeiras. A mudança tem de vir de dentro.

O presidente do HSBC, no Reino Unido, António Simões, disse, numa entrevista, que ser banqueiro em Londres é "o pior da sociedade". É assim?
É. O pior que pode acontecer a uma profissão é não ser respeitada. O comum dos mortais acha que o banqueiro rouba. Infelizmente, tivemos escândalos: as perdas da UBS e do JP Morgan, a manipulação da taxa Libor e do mercado de divisas Foreign Exchange [Forex]. Isso não ajuda. Estamos a falar de pessoas que estão dentro das instituições a fazer coisas que eu não acredito que os gestores de topo não saibam. Sabem, mas fecham os olhos, porque ganham dinheiro e porque os outros fazem o mesmo. É um problema comportamental.

Não se pode confiar nos banqueiros, mas consegue-se controlá-los? Parecem estar sempre um passo à frente do supervisor...
Não podemos pôr um "polícia" em cada departamento dos bancos. A regulação tem de vir de dentro. Para meu primeiro livro, verifiquei se as empresas envolvidas nos maiores escândalos tinham os valores presentes. O caso típico era o da Siemens. Tinha uma série de valores e princípios, mas foi apanhada a pagar luvas de mil milhões de euros a vários países. Quando uma empresa tem valores mas os funcionários não os cumprem, cria-se uma clivagem. Não podemos pedir-lhes que o façam de um dia para o outro. Têm de ser os gestores de topo a criar uma atitude comportamental. Se as organizações criarem mecanismos de autocontrolo, vão viver mais anos.

Esse autocontrolo ainda está longe de existir na banca?
Algumas coisas melhoraram, como o diferimento no pagamento de bónus. Ao ter-se diferido os pagamentos, o incentivo para ganhar muito dinheiro num ano já não é tão grande. O mal é que foi feita regulação mas não autorregulação, porque tudo isto foi imposto pelo regulador. Acredito na autorregulação, mais do que em algo imposto de fora, com muitas regras.

O que foi feito é suficiente para evitar novas crises?
Depois da crise de 2007/8, os grandes bancos comerciais deixaram de comprar os produtos complexos que a banca de investimento inventava e voltaram ao negócio do "pão com manteiga": Emprestar, captar depósitos, tentar criar valor, sem alavancar tanto o balanço. Isso significa que os produtos de risco da banca de investimento vão hoje parar aos hedge funds [especulativos] ou a fundos de investimento típicos. A sociedade gestora de ativos Black Rock, a maior do mundo, gere 4 biliões de dólares (2,9 biliões de euros) de ativos. É um valor verdadeiramente...

Devia ser proibido?
Sim. O risco de uma só gestora ter mais do que um bilião de dólares já é uma loucura. Está-se a dar a alguém uma capacidade tremenda de gestão e a criar o risco de trazer problemas aos mercados. Os reguladores ainda não perceberam isso. Antes, o risco estava disseminado entre hedge funds, fundos de investimento, fundos de pensões e bancos comerciais. Como estes, agora, não podem ter ativos de risco, os outros, que são regulados de outra forma, podem ter tudo! Quando estou a concentrar ativos desses no meu balanço, estou a aumentar o risco sistémico, e não a diminuí-lo. Há algo que não bate certo.

A próxima crise vai começar no dia em que os EUA deixarem de pagar a dívida, como antevê no livro?
Sim. Há de surgir um momento em que esta bolha da dívida americana, criada nos últimos anos... Entre meados de 2007 e meados de 2013, a dívida mundial subiu de 70 biliões para 100 biliões de dólares. No mesmo período, a dívida do Estado americano subiu de 4,5 biliões para 12 biliões de dólares. Quase triplicou. É verdade que os EUA estão a crescer, que são a maior economia do mundo, mas chegará uma altura em que terão de reduzir a dívida. É o que me preocupa mais, porque acho que para tudo o resto há dinheiro. Para isto, não há.

Os bancos já estão saudáveis, como nos querem fazer crer?
A banca só está saudável quando a atividade de crédito cresce. Depósitos recebem sempre, é uma atividade natural. Mas têm que emprestar. Eu acho que estão no bom caminho para começarem a emprestar e se tornarem saudáveis.

Não emprestam, porque não têm saúde ou porque as empresas não procuram crédito?
Os bons negócios estão equilibrados. Não estão à procura de mais financiamento. O mercado doméstico está retraído e as empresas não investem num aumento de capacidade para depois não venderem. E os resultados da procura de novos mercados não são imediatos. A banca vai fazer melhores empréstimos quando a economia crescer mais.

Como vê os prejuízos da banca portuguesa, registados nos últimos anos?
A banca portuguesa cometeu um erro em 2007, 2008 e 2009. Foram feitos muitos empréstimos, porque não se acreditava na crise, especialmente a projetos sobredimensionados, da construção e imobiliário. Só quando Portugal foi intervencionado é que a banca parou. Os bancos com menos atividade nessas áreas - como o BPI - estão a recuperar bem. Os bancos mais ativos - como o BCP - tiveram muitos prejuízos. O reconhecimento dos prejuízos da banca não é um problema, desde que a economia cresça e se possa começar a emprestar, de forma sã. Mas, com as condições que nos foram impostas pela troika - subidas brutais de impostos, perda de rendimentos...

A receita da troika não foi a mais adequada?
Não fomos capazes de negociar bem. A culpa é dos dois partidos, PS e PSD. Todos os dias vejo um PR a pedir um entendimento, um PM a pedir o mesmo e um líder da oposição a dizer que não assina. Isto é gozar com o cidadão que está a sofrer. Os dois partidos deviam negociar um entendimento para os próximos dez anos. Não lhes está a ser pedido mais do que corrigir todas as barbaridades que fizeram nos últimos 25 anos.

Como encarou o manifesto dos 70 a favor da reestruturação da dívida pública?
Tudo tem um timing, e este não é o timing. Depois de três anos de sacrifícios, parece-me inusitado dizer que, afinal, a solução é não pagarmos a dívida. E vejo pessoas naquele manifesto que foram parte do problema. Enquanto  estiveram no poder, fizeram barbaridades. A ex-líder do PSD faz declarações na televisão como se nunca tivesse estado à frente do partido, nem tivesse feito parte do Governo, nem tivesse sido ministra das Finanças. É algo que me choca.

Mas como é que vamos pagar uma dívida que atinge 130% do PIB?
Não é um assunto de hoje. Estamos na Zona Euro, é lá que vão ser encontradas medidas corretivas. É mais importante criar emprego do que reestruturar a dívida. É preciso que se criem mais três ou quatro Autoeuropas em Portugal. Quero é que o povo melhore e viva melhor, com melhores salários e mais emprego. Não quero o caos. Vá perguntar aos argentinos se eles desejaram o caos. Todos os que escreveram o manifesto deviam ter vivido na Argentina do pós-crise, porque se lá tivessem vivido nessa altura, como eu, veriam que não teve piada nenhuma. Aquele ano e meio foi muito duro, principalmente para as classes mais desfavorecidas. Os ricos já tinham saído para Miami. Era-lhes indiferente. Se for hoje à Venezuela, quem sofre é o povo. Os ricos não vivem lá. Saíram há muitos anos.

Os portugueses vão sofrer durante quanto tempo? Décadas?
Felizmente, tivemos sempre atitudes quase milagrosas para não passarmos muito tempo a sofrer (risos). Quando achamos que as coisas estão a entrar num caminho muito mau, acontece alguma coisa, arrepiamos caminho e encontramos uma solução mágica para os problemas. É difícil o que estamos a fazer e não sei se vai resultar na totalidade. Não depende só de nós. Depende da envolvente europeia e mundial, depende de como as taxas de juro vão evoluir...

Mesmo com um entendimento partidário e um equilíbrio orçamental, isto pode correr mal?
Mesmo que façamos tudo bem... Para os investidores que compram a nossa dívida e apostam em Portugal, o que é importante é que vejam uma atitude consciente dos governantes, que estes olham para o médio prazo.

Isso é fazer o jogo dos mercados.
Não é preciso fazer o jogo dos mercados na totalidade, mas é importante colocar balizas. Um governante não pode ser contra os mercados como um todo. O mundo financeiro faz parte do jogo. É preciso permitir-lhes uma leitura de médio prazo em relação a Portugal. Os mercados gostam de duas coisas, como digo no livro: de ganhar dinheiro a destruir um País e, a seguir, de ganhar dinheiro com a reconstrução. É simples.

Foi o que aconteceu com Portugal, com a Grécia...
Não tenha dúvidas. Quem levou os juros da dívida até aos 16% foram os mesmos artistas que, a seguir, voltaram a comprar e que hoje acreditam muito em Portugal.

Os que puseram os juros a 16% são os mesmos que hoje os colocam abaixo de 4,5 por cento?
Os mesmos. Os que hoje dizem que é melhor comprar dívida portuguesa do que irlandesa são os mesmos que diziam que se devia vender. Se calhar o analista é diferente, mas os chefes são os mesmos. Uma atitude em relação aos mercados é ser sempre cético. É preciso ler as análises de mercado com uma atitude cética, mas há quem as leia como se fosse a Bíblia.

O Dono do Mundo é autobiográfico?
Não (risos)

Retrata a geração que tem agora 50 anos, que assistiu à queda do Muro de Berlim, que viveu o alargamento a Leste, a crise mexicana, a crise asiática, a crise russa... Quantas dessas crises viveu por dentro?
Trabalhava com a América latina durante essas crises, mas não sou um especialista. Ao ter responsabilidades globais sobre os mercados financeiros, tinha também responsabilidades sobre a operação de Tóquio e Singapura, mas eram coisas muito pequenas...

Teve algum papel na crise do México, como o protagonista do seu romance?
Não, mas conhecia um tesoureiro do banco no México que me relatava os acontecimentos. Muito do que está no livro é, infelizmente, verdade. As crises acontecem por causa da ganância dos bancos americanos. Olhavam para o México como uma salvação mas, de repente, o México dá para o torto e saíram todos. Ganharam imenso dinheiro no processo.

Os banqueiros não se questionam quando destroem a economia de um País?
Não. Isso não faz parte daquele mundo. Questionarem-se porquê?

Você questionou-se...    
Eu questiono-me, mas a maior partes daquelas pessoas não. No final do dia, a comparação é entre o que é que eu e o meu banco ganhamos versus o meu concorrente e o seu banco. Só se muda comportamentalmente, mas leva tempo.

Como é que se afastou da banca?
Comecei a ter muitas dúvidas, em 2000, 2001. Gosto de adrenalina, não gosto de viver na bonança. Irrita-me. Quando as coisas correm bem, não sei que fazer. Sou muito cético. Gosto de crises, de desafios. As crises atrás de crises não eram um problema. Eu achava piada. A questão foi começar a ver o que sucedeu à Enron, à Worldcom... A Enron era um bom negócio que fazia sentido existir. Tinha empresas de energia, centrais térmicas. Mas, depois, houve falsificação de contas. Comecei a olhar e a pensar que algo estava errado. Mas estava a falar com as paredes. Ninguém queria saber, ninguém queria ouvir. Chegava a casa à noite e pensava: O que é que estou aqui a fazer? Entre 2001 e 2003, fiz essa reflexão. Eu não podia mudar o mundo nem obrigar os outros a pensarem como eu. As coisas não estavam bem e tive que encontrar o meu caminho. Há muita gente que aguenta, porque se ganha muito dinheiro, mas depois aparece um AVC, um cancro, e nada funciona. Eu não conseguia.

Ganhou milhões, durante os 16 anos que trabalhou no setor financeiro?
Sim, ganhei alguns milhões.

Como foi tratado pelos seus colegas?
Como uma ave rara. Um tipo estranho, esquisito, que sempre teve mau feitio. A melhor forma de me retratarem foi dizer que eu sempre tinha sido complicado. A partir de 2008, começaram a dar-me razão.

Também fez uma viragem para um mundo mais espiritual, como o personagem do livro?
Fiz, em 2003. Nesse processo de chegar a casa à noite e de pensar que não podia continuar assim, percebi que gastava dinheiro a mais. Levantava 300 euros no Multibanco e gastava-os em dois dias. Mas gastava-os em nada. Quando se começa a viver assim, olha-se para o dinheiro e deixa de ter valor. É a lógica de nos compensarmos de alguma forma. Um dia, saí da minha casa em Madrid, entrei numa igreja e falei com Deus. Disse-lhe: "Se cheguei até aqui, como é que me podes ajudar? Já não percebo o que estou a fazer." Sempre fui religioso, mas foi muito mais do que um re-"encontro com a fé cristã. No dia seguinte, demiti-me.

Houve, então, um clique?
Sim. Entrei na igreja para pedir ajuda. Já não sabia o que fazer. Nesse dia, fui trabalhar mas, no dia seguinte, o meu chefe comunicou-me que tínhamos de despedir mais cinco pessoas. Eu disse: "Quer despedir? Vou facilitar-lhe a vida." Já não acreditava no modelo. Era, pura e simplesmente, pôr os números a bater certo. Quem estava ali mal era eu. Demiti-me e salvei o emprego dessas pessoas.

Que ideal de banco defende?
Um banco cujos funcionários e gestores de topo entendam o papel da banca, ou seja, no qual os funcionários tenham consciência dos valores da instituição e transformem esses valores em ferramentas de negócio. E que as instituições tenham uma preocupação relativamente à sociedade.  

Voltaria a ser banqueiro se pudesse criar um banco assim?
Sim, voltaria. Mas é difícil. Teria de ser um banco criado do zero, com pessoas que pensassem da mesma forma.

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