Fechar as famílias pode “potenciar o lado muito privado da violência doméstica”, teme o psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Daniel Cotrim. Em declarações ao Observador, numa altura em que, na cidade chinesa de Jingzhou, 90% das denúncias da violência estão relacionadas com a Covid-19, o psicólogo alerta que “é importante que as redes de vizinhança funcionem”.
Até porque entre a medidas adotadas pelo Governo para conter o surto do novo coronavírus, depois de declarado estado de emergência esta quarta-feira, está uma que permite, mesmo nesta fase, a circulação na via pública de pessoas quando houver “necessidade de acolhimento de emergência de vítimas de violências doméstica” — bem como de vítimas de tráfico de seres humanos.
Violência doméstica quadruplicou na China. A tensão pode explicar o fenómeno, mas “quarentena não é desculpa”
Ainda é “muito cedo” para se conseguir tirar conclusões em Portugal. Não há, para já, um aumento de casos de violência doméstica. Mas o psicólogo Daniel Cotrim admite que este potencial fenómeno é algo que “preocupa” a APAV, até porque tem estado atento às estatísticas que chegam da China. Neste país, onde começou o surto do novo coronavírus, a doença tem tido um enorme impacto na violência doméstica. “De acordo com as nossas estatísticas, 90% das causas da violência estão relacionadas com a Covid-19“,
disse Wan Fei à revista Sixth Tone. O antigo polícia, que fundou uma organização sem fins lucrativos de combate à violência doméstica em Jingzhou, uma cidade na província chinesa de Hubei, revelou também que, naquela localidade, as denúncias quase que quadruplicaram: em fevereiro, contabilizam-se 162 face às 47 do mesmo mês do ano passado.
É mais ou menos o que acontece durante as férias — mas pior. “Nesses períodos, as pessoas estão próximas, por isso as situações de conflito, apesar de o ambiente ser mais ou menos ligeiro, proporcionam o aumento da violência”, explica o psicólogo da APAV, Daniel Cotrim. Mas isolamento social e quarentena não são sinónimos de férias e, por isso, “imaginando o pior dos cenários, o crescendo da violência é muito maior“, acrescenta em declarações ao Observador.
E existe uma explicação para este fenómeno? Sim. “O facto de estarmos confinados, de as pessoas se encontrarem em isolamento social, de estarem em quarentena, o facto de o próprio ambiente social ser mais tenso, ser mais pesado e de haver uma maior desconfiança do ponto de vista das relações pessoais e interpessoais, faz aumentar as situações de conflitualidade e os de relacionamentos conflituosos”, explica Daniel Cotrim.
Há dois cenários possíveis: se, por um lado, pode haver umaintensificação de atos violentos nas famílias onde já existiam, a verdade é que, em ambientes onde não havia violência doméstica, essa pode passar a ser uma realidade. O psicólogo da APAV explica, desde logo, que “a proximidade entre as pessoas não é uma coisa má”, mas é “exatamente a tensão, o medo, a preocupação e o maior nervosismo que este período traz” que podem fazer com que, “de repente, em alguns casais onde nem havia violência, se possam propiciar situações de violência doméstica”.É mais ou menos o que acontece durante as férias — mas pior. “Nesses períodos, as pessoas estão próximas, por isso as situações de conflito, apesar de o ambiente ser mais ou menos ligeiro, proporcionam o aumento da violência”, explica o psicólogo da APAV, Daniel Cotrim. Mas isolamento social e quarentena não são sinónimos de férias e, por isso, “imaginando o pior dos cenários, o crescendo da violência é muito maior“, acrescenta em declarações ao Observador E existe uma explicação para este fenómeno? Sim. “O facto de estarmos confinados, de as pessoas se encontrarem em isolamento social, de estarem em quarentena, o facto de o próprio ambiente social ser mais tenso, ser mais pesado e de haver uma maior desconfiança do ponto de vista das relações pessoais e interpessoais, faz aumentar as situações de conflitualidade e os de relacionamentos conflituosos”, explica Daniel Cotrim.
Há dois cenários possíveis: se, por um lado, pode haver umaintensificação de atos violentos nas famílias onde já existiam, a verdade é que, em ambientes onde não havia violência doméstica, essa pode passar a ser uma realidade. O psicólogo da APAV explica, desde logo, que “a proximidade entre as pessoas não é uma coisa má”, mas é “exatamente a tensão, o medo, a preocupação e o maior nervosismo que este período traz” que podem fazer com que, “de repente, em alguns casais onde nem havia violência, se possam propiciar situações de violência doméstica”.O psicólogo lembra, no entanto, que todos estes fatores, apesar de explicarem o fenómeno, não podem servir de justificação, nem uma agressão deve ser desculpada porque o agressor estava em stress. “A quarentena não é desculpa.Tal como noutros casos, a vítima não pode achar que uma agressão é de caráter ocasional e pontual e dizer: ‘Isto aconteceu porque se deveu a…’. As vítimas vão sempre tentar arranjar uma justificação para o que aconteceu, seja a quarentena ou outra qualquer”, acrescentou.
“Estamos a potenciar o lado privado da violência doméstica”. Todas as horas são “horas do medo” e a vizinhança é importante
Nos casos em que já havia violência doméstica, o atual ambiente de pandemia é, nas palavras do psicólogo da APAV, “propiciador para que a mesma continue e que se possa agravar”. Porquê? Por um lado, o “poder” do agressor “está muito mais bem estabelecido”. Por outro, a “vítima não pode sair dali“. “O exercício do poder, se já era regular, passa a ser mais que regular. Deixou de haver a hora do medo — quando a pessoa chegava a casa ou quando o agressor estava por perto. Agora, ele e ela estão ali”, diz o psicólogo Daniel Cotrim.O que muda? Desde logo, o comportamento das vítimas vai mudando, para não aumentar o grau de violência. O psicólogo da APAV dá exemplos: “Se [as vítimas] já não confrontavam o agressor, vão passar muito menos a fazê-lo, vão passar a pôr muito menos em causa aquilo que ele ou ela diz, vão aceitar muito mais facilmente todas as regras, vão permitir até situações de violência sexual. Se já havia algum consentimento, acaba por ser muito mais aceite, até porque, para além das vítimas, agora estão os filhos em casa também”. Exatamente o facto de os filhos também estarem em casa, com os pais, pode potenciar alguma agressividade — especialmente quando o agressor costumava estar “distanciado do núcleo familiar”.
O importante é denunciar — o que, neste contexto, pode ser ainda mais difícil, uma vez que o agressor está mesmo ali ao lado, durante todo o dia. À pergunta de como é que consegue fazer a denúncia sem que o agressor ou agressora percebam, o psicólogo responde: “Podem fazê-lo através dos seus telemóveis, enviando mensagens ou emails e depois apagando este registo. A vítima pode contactar a APAV por email, mas o mais fácil será sempre através das redes sociais. As forças de segurança continuam a funcionar”.Daniel Cotrim pede, contudo, que a população não se esqueça que aviolência doméstica continua a ser um crime público e “é importante que as redes de vizinhança funcionem — até porque os agressores controlarão os telemóveis das vítimas”. “É importante pensarmos também que ao nosso lado podem estar a acontecer situações de violência doméstica que devemos denunciar. Neste período, estamos em isolamento social, mas os direitos das pessoas não. E, ao mesmo tempo, estamos a potenciar o lado muito privado da violência doméstica“, acrescentou.
Quanto à APAV, o atendimento presencial continua. “Pedimos às pessoas que liguem para o 116006 — que é um número gratuito —, que nos telefonem primeiro. A necessidade de fazer atendimento presencial é feita, como sempre foi, pelos técnicos de apoio à vítima que estão na linha. E, em situações de extrema importância de atendimento presencial, as pessoas vão dirigir-se ao gabinete e apoio à vítima. Estará lá um técnico que as irá atender e que vai funcionar da forma normal para aquilo que vai exigir da situação. Se não for efetivamente uma situação urgente — como um pedido de informação, por exemplo —, faz-se uma avaliação caso a caso”.
Ainda assim, a APAV já prevê a adoção de medidas mais drásticas, caso o surto em Portugal tenha o mesmo efeito na violência doméstica que teve na China. “Sabemos que há tendência para que este confinamento e isolamento em que já estamos se transforme numa coisa mais dura e mais pesada como a quarentena e estamos a pensar como conseguir ajudar as pessoas, mas não ficarão sem ajuda”, garante Daniel Cotrim.
(in observador.pt ) (o texto é de Carolina Branco)