sábado, 10 de fevereiro de 2018

Tanto bruaá sem grande razão para tal...

A propósito da Nota para receção do capítulo VIII da exortação apostólica "Amoris Laetitia" (A Alegria do Amor que se vive nas famílias), publicada 
pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel CLemente, decidi partilhar este magnífico artigo, para um bom esclarecimento nas nossas mentes:

"Foi mais uma daquelas vezes em que as redes sociais se incendiaram e as caixas de comentários se encheram de indignações, mas sobretudo foi mais uma daquelas vezes em que a leitura descontextualizada de um texto complexo alimentou uma controvérsia em que não se inibiram de entrar até alguns que tinham obrigação de falar com ponderação. O tema a que me refiro é, naturalmente, o bruaá levantado pela notícia do Público sobre a Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia' publicada por D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa. O título sonante prestava-se à controvérsia – Católicos recasados devem ser aconselhados a abster-se de ter relações sexuais –, uma controvérsia de que o mesmo jornal tratava de dar hoje conta, tal como o Diário de Notícias.

Antes de dar conta de algumas reacções a este debate – e também à nota de D. Manuel Clemente – parece-me relevante remeter para os documentos originais. Devo dizer que, como jornalista, é um hábito que ganhei nos anos do papado de Bento XVI tantas eram as vezes que as suas intervenções apareciam truncadas ou mal interpretadas até pelas agências noticiosas internacionais. Nessa altura o Vaticano já tinha um excelente site, pelo que era fácil consultar os documentos em várias línguas e na sua versão autentificada. Não poucas vezes verifiquei que as interpretações eram distorcidas ou as frases eram citadas fora de contexto, pelo que ontem tive a mesma reacção ao deparar-me com a notícia. A leitura cuidada dos documentos não sustenta, na minha perspectiva, o burburinho que se levantou, mas não há como cada um julgar por si.
Primeiro que tudo vamos às origens, e as origens estão na exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), escrita pelo Papa Francisco na sequência do Sínodo dos Bispos dedicado às questões da família. Esse documento pode ser lido aqui na íntegra, na tradução portuguesa oficial do Vaticano: EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LÆTITIA DO SANTO PADRE FRANCISCO AOS BISPOS, AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS, ÀS PESSOAS CONSAGRADAS, AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA.
Decorria desta exortação que os bispos deveriam, nas suas dioceses, procurar interpretar as suas orientações da forma mais adequada às realidades locais. Os bispos, como os padres e todos os fiéis. Isso mesmo tem vindo a acontecer, sendo que o documento de D. Manuel Clemente trata precisamente do capítulo que mais dúvidas e discussões tem suscitado, o capítulo VIII, onde se abordam as chamadas “situações irregulares”, nomeadamente a de fiéis recasados. Neste processo destacou-se a carta dos bispos de Buenos Aires, "Criterios Básicos Para La Aplicación Del Capítulo Viii De La Amoris Laetitia", um documento que o próprio papa Francisco acolheu de forma entusiástica (no link pode ser lido tanto o documento dos bispos, como a carta que Francisco depois lhes enviou). As suas palavras não deixam lugar a dúvidas: “El escrito es muy bueno y explícita cabalmente el sentido del capitulo VIII de Amoris laetitia. No hay otras interpretaciones. Y estoy seguro de que hará mucho bien.”
Ora foi precisamente o documento dos bispos de Buenos Aires que o Cardeal Patriarca toma como referência para o texto, citando-o longamente na missiva que publicou e para a qual volto a deixar a ligação: Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia'. Ora sucede que é precisamente no documento argentino que surge a referência à “continência”, algo que é explicitamente citado na alínea b) do ponto 2 da Nota:
b) Quanto ao processo: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». Continuando: «Noutras circunstâncias mais complexas, e quando não se pôde obter uma declaração de nulidade, a opção mencionada pode não ser de facto fatível. Não obstante, é igualmente possível um caminho de discernimento. Quando se chega a reconhecer que, num caso concreto, há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), particularmente quando uma pessoa considere que cairia numa ulterior falta, prejudicando os filhos da nova união, a Amoris Laetitia abre a possibilidade do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia (cf. notas 336 e 351). Estes sacramentos, por sua vez, dispõem a pessoa a prosseguir amadurecendo e crescendo com a força da graça.»  
É neste quadro que, já no final do texto, D. Manuel Clemente deixa as suas sugestões sobre a forma de lidar, na sua diocese – a de Lisboa – com situações que a Igreja Católica, por considerar o matrimónio indissolúvel, trata como “irregulares”. São seis “alíneas operativas” que devem ser tomadas em conjunto e não isoladamente, sendo que é nelas que volta a surgir a referência à “continência”. Vejamos quais são:

a) Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais Familiaris Consortio, 84, Sacramentum Caritatis, 29 e Amoris Laetitia, 299 (cf. apêndice). 
b) Verificar atentamente a especificidade de cada caso. 
c) Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio. 
d) Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação. 
e) Atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados.
f) Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental.

A fechar a nota D, Manuel Clemente recorda três pronunciamentos de São João Paulo II, Bento XVI e Francisco sobre o acompanhamento de divorciados recasados.



Sendo eu hoje um não crente mas que teve formação católica posso entender que a linguagem da Igreja nem sempre é fácil de entender e ainda menos me custa verificar que existe um grande desconhecimento sobre a sua doutrina, as suas regras e o seu porquê. Por isso, ainda antes de qualquer troca acalorada de argumentos, que é sempre possível e salutar, importa compreender o enquadramento tanto da exortação apostólica do Papa Francisco, como da nota do Cardeal Patriarca. É precisamente isso que se faz em Divorciados, abstinência sexual e Igreja. 8 perguntas para perceber a polémica, um explicador do Observador onde João Francisco Gomes procura esclarecer oito temas:

  1. Como começou a polémica sobre os divorciados recasados?
  2. Afinal, o que defende o Papa Francisco que seja feito nestes casos?
  3. Em que casos é que a Igreja admite o acesso aos sacramentos?
  4. O que faz a Igreja para facilitar as declarações de nulidade do matrimónio?
  5. Porque é que o cardeal-patriarca escreveu agora este documento?
  6. E o que diz o documento?
  7. O cardeal-patriarca aconselha os divorciados recasados a não terem relações sexuais?
  8. Que outras dioceses portuguesas estão a aplicar estas novas orientações? E de que forma?
Esperando ter contribuído para que se possa partir para esta discussão de uma base mais esclarecida, acrescento mais duas sugestões relativas a dois textos onde o ponto de partida é mais informado. O primeiro é uma peça da agência Ecclésia onde se dá voz a um médico e padre e a um juiz: «Acompanhar e integrar» são objetivos de diferentes propostas para várias situações familiares. Pequena passagem: “Para o juiz Pedro Vaz Patto, só quem vive a “fidelidade a uma promessa” e acredita na “indissolubilidade do matrimónio” coloca a possibilidade da “vida em continência”. “É uma proposta difícil, mas há quem o faça, da mesma maneira que há quem renuncie ao casamento depois de ter sido abandonado pelo cônjuge por fidelidade a uma promessa que foi feita”, acrescentou.
Um outro texto bastante interessante – e até combativo – é o do padre jesuíta Miguel Almeida, que mesmo estando nos Estados Unidos em estudo e em missões que têm precisamente a ver com a família, não passou ao lado da controvérsia suscitada pelos artigos dos jornais. Em O Patriarca e o sexo dos recasados critica os “títulos bombásticos”, lamenta que poucos vão ler a nota e lamenta os termos de um debate criado “porque, enviesadamente, para não variar, os jornalistas puseram os óculos do sexo e veem tudo pelo mesmo ângulo”. Ao longo do texto faz críticas quer aos católicos mais conservadores, quer à discussão aberta pelos jornais: “O Patriarca de Lisboa, na sua missão de bispo local, declarou-se em comunhão com o Papa e com a Igreja universal. E, lendo a nota pastoral, vê-se que o fez de modo prudente, tentando respeitar as diferentes sensibilidades que sabe coexistirem na sua diocese. Mas, para alguns, esta atitude é condenavelmente progressista. À fogueira! Para o resto das pessoas, que tiveram acesso a esta nota exclusivamente através das notícias nacionais, D. Manuel Clemente é exposto a um idealismo ridículo porque propõe que os “Católicos recasados devem ser aconselhados a abster-se de ter relações sexuais” (título do Público). Ridícula é a notícia!” (o negrito é meu).
Mas assim estivemos, e estamos. Espero que, com esta ajuda e recorrendo aos documentos originais, os leitores desta newsletter possam ficar mais esclarecidos. E também lhes desejo, naturalmente, um bom fim-de-semana, com ou sem folguedos de Carnaval a animar." 

(in Observador, MACROSCÓPIO por José Manuel Fernandes, 09.02.2018)

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Um Poema dedicado à Mãe


imagem in: mensagenscomamor.com
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu 
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti - não me 
respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in Diário IV

Miguel Torga
(imagem in:revistapazes.com)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Provérbios Chineses

Provérbios Chineses

(in: chinanaminhavida.com)

"Diz-me e eu esquecerei
Ensina-me e eu lembrar-me-ei
Envolve-me e eu aprenderei!"

"Não dê o peixe! Ensine antes a pescar!"


"Antes de começar a criticar o mundo
Dê três voltas dentro de casa"

"Os ausentes estão sempre errados"

"Os professores abrem a porta, 
mas você precisa de entrar sozinho"

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Calligramme (Guillaume Apollinaire)


in: http://calligramme.loria.fr 
Reconnais-toi 
Cette adorable personne c'est toi 
Sous le grand chapeau canotier 
Oeil 
Nez 
La bouche 
Voici l'ovale de ta figure 
Ton cou exquis 
Voici enfin l'imparfaite image de ton buste adoré  
                                       vu comme à travers un nuage 
Un peu plus bas c'est ton coeur qui bat
Guillaume Apollinaire, 

extrait du poème du 9 février 1915, 
(poèmes à Lou).


"Guillaume Apollinaire (nascido Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary de Wąż-KostrowickiRoma26 de agosto de 1880 — Paris9 de novembro de 1918) foi um escritor e crítico de arte francês, possivelmente o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX, conhecido particularmente por sua poesia sem pontuação e gráfica, e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, além de ser o criador da palavra Surrealismo.
Filho da condessa polaca Angelica Kostrowicka e de pai desconhecido- suspeita-se de um aristocrata suíço-italiano chamado Francesco Flugi d'Aspermont,passa seus primeiros anos entre RomaMônacoNiceCannesBaratier e Lyon. Desde 1902 foi um dos membros mais populares do bairro artístico parisiense de Montparnasse. Foram seus amigos e colaboradores Pablo PicassoMax JacobAndré SalmonMarie LaurencinAndré DerainBlaise CendrarsPierre ReverdyJean CocteauErik SatieOssip ZadkineMarcel Duchamp e Giorgio de Chirico.
Em 1901 e 1902, trabalhou como preceptor da menina Gabrielle em uma família alemã, na companhia da qual viajará pela Alemanha, tendo se apaixonado pela governanta inglesa Annie Playden, que o recusou, sendo que a mesma partiu em 1905 para a América. Da paixão não correspondida, surgiu Annie et La Chanson du Mal-Aimé.
Entre 1902 e 1907, de volta a Paris, trabalhou como empregado de bancos e começou a publicar contos e poemas em revistas. Em 1907, conhece a artista plástica Marie Laurecin, com quem terá uma tumultuada relação. É por essa época que decide viver de seus escritos. No começo de 1907, publica anonimamente As Onze Mil Varas. Em 1909 publicou o seu primeiro livro oficial: O Encantador em Putrefação, baseado na lenda de Merlin e Viviane. No mesmo ano, se dispõe a publicar uma antologia dos textos do Marquês de Sade, bem de acordo com uma característica sua que chocava os adeptos da tradição francesa: o fascínio pelo romance libertino. Assim, o mesmo foi o responsável pela introdução dos "livros malditos" de Sade na cena literária francesa do início do século, que até então era um escritor praticamente desconhecido. Na apresentação da edição, escreveu um longo ensaio biográfico no qual se referia à Sade como "o espírito mais livre que já existiu no mundo".
Em setembro de 1911, quando já era reconhecido como um dos poetas mais importantes da vanguarda parisiense, Apollinaire é acusado de cumplicidade no roubo de uma obra do Museu Louvre, nada menos que a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, roubo no qual Pablo Picasso, também já muito famoso, foi igualmente implicado. Ele é preso durante uma semana e depois liberado. Esta experiência marcá-lo-á. Aos olhos dos defensores das tradições clássicas, que se aproveitaram da situação para denunciar "atos de barbárie" dos estrangeiros contra a cultura nacional, pouco importava a inocência de Apollinaire no caso, visto que ele era acusado de atentar contra os valores da civilização, acusação esta estendida a outros estrangeiros radicados em Paris, como Pablo PicassoGertrude Stein e Stravinski.
Em 1913, Apollinaire publica Álcoois, coletânea de seus trabalhos poéticos desde 1898. Sua poesia dispensava a pontuação e a tipografia regular. Voltava-se para uma temática cosmopolita, na qual incluía novidades técnicas como o avião, o telefone, o rádio e a fotografia.
Em agosto de 1914, ele tenta alistar-se nas Forças Armadas Francesas, sem sucesso, visto que não possuía a nacionalidade francesa. Em dezembro de 1914, repete a tentativa, sendo aceite e iniciando seu processo de naturalização. Pouco antes de ingressar efetivamente nas Forças Armadas, conhece e se apaixona por Louise de Coligny-Châtillon, chamada por ele de "Lou". É uma jovem divorciada com um estilo de vida livre, que não esconde do poeta sua ligação com um homem por ela chamado de "Toutou". Ele dedicará a moça vários de seus poemas. Quando Apollinaire parte para o campo de batalha, uma correspondência de uma poesia notável nasce dessa relação. Ambos rompem em 1915, prometendo continuar amigos.

Fotografia em preto e branco, 1916, cabeça enfaixada após ferimento na têmpora.
Em janeiro de 1915, Apollinaire conhece Madeleine Pagès num comboio, de quem ficará noivo em agosto daquele mesmo ano. Mas em abril de 1915, ele parte com o regimento de artilharia de campo, N° 38, para a fronte da batalha. Em março de 1916, é naturalizado francês, sendo que naquele mesmo mês é ferido gravemente na cabeça. Após longa convalescença, volta gradativamente ao trabalho. Em junho de 1917, sua peça Les Mamelles de Tirésias, drama surrealista mesclando desespero com humor e escrita durante sua recuperação do ferimento, é encenada. Ele também publicou um manifesto artístico chamado L'Esprit Noveau Et Les Poétes. Em 1918, publica os famosos Calligrammes, poemas gráficos sobre a paz e a guerra de notável lirismo visual. Casa com Jacqueline, a "bela russa" do poema "La Joulie Rousse", que publicará muitas de suas obras póstumas.
Morreu jovem com apenas 38 anos de idade, aos 9 de novembro de 1918, vítima da gripe espanhola, doença pandêmica que também chegou ao Brasil. Foi enterrado no cemitério de Père-Lachaise em Paris, tendo o seu túmulo uma escultura em forma de menir feita por Picasso.
Sua obra literária e crítica anunciava os princípios de uma nova estética que tinha como fundamento a ruptura com os valores do passado. Os seus poemas, O bestiário ou o cortejo de Orfeu (1911), Álcoois (1913) e Calligrammes (1918), Zona, carregado de apologia ao cristianismo mesclado aos ideais futuristas, refletem a influência do simbolismo, com importantes inovações formais. Ainda em 1913, apareceu o ensaio crítico Os pintores cubistas, em defesa do novo movimento como superação do realismo. Também foi autor de importantes manifestos futuristas e inventor, conforme comentários dos artistas contemporâneos reconhecidos por Breton, do termo surrealismo, para descrever a última das vanguardas do início do século XX." (in pt.wikipedia.org)