Transcrevo este post que encontrei
no blog http://jardimdasdelicias.blogs.sapo.pt/
E por achar que é um tema atual e que interessa a todos, aqui vai:
Alice Brito
Carta ao Ulrich
"Sei que a raiva não é boa conselheira. Paciência. Aí vai.
Havia
dantes no coração das cidades e das vilas umas colunas de pedra que
tinham o nome de picotas ou pelourinhos. Aí eram expostos os
sentenciados que a seguir eram punidos com vergastadas proporcionais à
gravidade do seu crime. Essa exposição tinha também por fim o escárnio
popular.
Era aí que eu te punha, meu glutão.
Atadinho
com umas cordas para que não fugisses. Não te dava vergastadas. Vá lá,
uns caldos de vez em quando. Mas exibia-te para que fosses visto pelas
pessoas que ficaram sem casa e a entregaram ao teu banco. Terias de
suportar o seu olhar, sendo que o chicote dos olhos é bem mais possante
que a vergasta.
Terias,
pois, de suportar o olhar daqueles a quem prometeste o paraíso a
prestações e a quem depois serviste o inferno a pronto
pagamento.Daqueles que hoje vivem na rua.
Daqueles
que, para não viverem na rua, vivem hoje aboletados em casa dos pais,
dos avós, dos irmãos, assim a eito, atravancados nos móveis que deixaram
vazias as casas que o teu banco, com a sofreguidão e a gulodice de
todos os bancos, lhes papou sem um pingo de remorso.
Dizes
com a maior lata que vivemos acima das nossas possibilidades. Mas não
falas dos juros que cobraste. Não dizes, nessas ladainhas que andas
sempre a vomitar, que quando não se pagava uma prestação, os juros do
incumprimento inchavam de gordos, e era nesse inchaço que começava a
desenhar-se a via-sacra do incumprimento definitivo.
Olha,
meu estupor, sabes o que acontece às casas que as pessoas te entregam?
Sabes, pois… São vendidas por tuta e meia, o que quer dizer que na maior
parte dos casos, o pessoal apesar de te ter dado a casa fica também com
a dívida. Não vale a pena falar-te do sofrimento, da vergonha, do
vexame que integra a penhora de uma casa, porque tu não tens alma,
banqueiro que és.
Tal
como não vale a pena referir-te que os teus lucros vêm de crimes
sucessivos. Furtos. Roubos. Gamanços. Comissões de manutenção. Juros
moratórios. Juros compensatórios, arredondamentos, spreads, e mais juros
de todas as cores. Cartões de crédito, de débito, telefonemas de
financeiras a oferecerem empréstimos clausulados em letrinhas
microscópicas, cobranças directas feitas por lumpen, vale tudo, meu
tratante. Mesmo assim tiveste de ser resgatado para não ires ao fundo,
tal foi a desbunda. E, é claro, quem pagou o resgate foram aqueles
contra quem falas todo o santo dia.
Este
país viveu décadas sucessivas a trabalhar para os bancos. Os
portugueses levantavam-se de manhã e ainda de olhos fechados iam bulir,
para pagar ao banco a prestação da casa. Vidas inteiras nisto. A grande
aliança entre a banca e a construção civil tornavam inevitável, aí sim,
verdadeiramente inevitável, a compra de uma casa para morar. Depois os
juros aumentavam ou diminuíam conforme era decidido por criaturas que a
gente não conhece. A seguir veio a farra. Os bancos eram só facilidades.
Concediam empréstimos a toda a gente. Um carnaval completo, obsessivo,
até davam prendas, pagavam viagens, ofereciam móveis. Sabiam bem o que
faziam.
Na
possante dramaturgia desta crise entram todos, a banca completa e
enlouquecida, sendo que todos são um só. Depois veio a crise. A banca
guinchou e ganiu de desamparo. Lançou-se mais uma vez nos braços do
estado que a abraçou, mimou e a protegeu da queda.
Vens
de uma família que se manteve gloriosamente ricalhaça à custa de
alianças com outros da mesma laia. Viveram sempre patrocinados pelo
estado, fosse ele ditadura ou democracia. Na ditadura tinham a pide a
amparar-vos. Uma pide deferente auxiliava-vos no caminho. Depois veio a
democracia. Passado o susto inicial, meu deus, que aflição, o povo na
rua, a banca nacionalizada, viraram democratas convictos. E com razão. O
estado, aquela coisa que tu dizes que não deve intervir na economia,
têm-vos dado a mão todos os dias. Todos os dias, façam vocês o que
fizerem.
Por
isso falas que nem um bronco, com voz grossa, na ingente necessidade de
cortes nos salários e pensões. Quanto é que tu ganhas, pá?
Peroras infindavelmente sobre a desejável liberalização dos despedimentos.
Discursas sem pejo sobre a crise de que a cambada a que pertences é a principal responsável.
Como
tu, há muitos que falam. Aliás, já ninguém os ouve. Mas tu tinhas que
sobressair. Depois do “ai aguenta, aguenta”, vens agora com aquela dos
sem-abrigo. Se os sem-abrigo sobrevivem, o resto do povo sobreviverá
igualmente.
Também houve sobreviventes em Auschwitz, meu nazi de merda!
É isso que tu queres? Transformar este país num gigantesco campo de concentração?
Depois,
pões a hipótese de também tu poderes vir a ser um sem-abrigo. Dizes
isto no dia em que anuncias 249 milhões de lucros para o teu banco. É o
que se chama um verdadeiro achincalhamento.
Por
tudo isto te punha no pelourinho. Só para seres visto pelos milhares
que ficaram sem casa. Sem vergastadas. Só um caldo de vez em quando.
Podes dizer-me que é uma crueldade. Pois é. Por uma vez terás razão.
Nada porém que se compare à infinita crueldade da rapina, da usura que
tu defendes e exercitas.
És
hoje um dos czares da finança. Vives na maior, cercado pelos sebosos
Rasputines governamentais. Lembra-te porém do que aconteceu a uns e ao
outro."
publicado por Augusta Clara às 08:00