terça-feira, 29 de setembro de 2020

Homenagem a Ruth Bader Ginsburg

 

in pt.wikipedia.org

Ruth Bader Ginsburg (1933-2020) foi a segunda mulher a chegar ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos. 

Ativista feminista, marcou os anos 70, lutando pela igualdade salarial ou o aborto, pelo direito ao trabalho, defensora da representatividade. 

Ficou conhecida pela resposta que deu quando lhe perguntaram: "Quando é que o Supremo Tribunal terá mulheres suficientes?" - 'quando forem nove' - (é o número total de Juízes)! A sua vocação principal era "tornar melhor a vida dos que não têm a nossa sorte: é isso que eu acho ser uma vida afortunada."

Morreu há dias, a 18 de setembro.

Ginsburg, conhecida pela sigla RBG, popularizada como a “notável RBG”, tornara-se nos últimos anos um ícone da esquerda americana por liderar a ala liberal do tribunal, o que não deixa de ser um sinal dos tempos ara alguém que nestes tempos de polarização se definia como moderada e independente. Por isso é por aí que começo e por um texto que não é de nenhum jornal americano, mas do espanhol El Pais: Somos diferentes. Somos uno. Escrito pelo fundador do diário madrileno, Juan Luis Cebrián, nele sublinha-se preisamente que “En la hora de los elogios y la admiración a la jueza Ginsburg no estaría de más que nuestros políticos de uno y otro signo aprendieran de su ejemplo y sabiduría. Aunque sus simpatías estaban con el Partido Demócrata, nunca se consideró a sí misma conservadora o liberal, sino independiente, y defendió la moderación y el compromiso, la apelación y el respeto a ley como la mejor manera de garantizar la convivencia y la paz. (…) Sus severas diferencias con los jueces conservadores y su jefe de filas, Antonin Scalia, no la impidieron votar muchas veces a su lado cuando consideraba que las decisiones a tomar eran justas. Y lejos de producir una animadversión personal generaron una complicidad extrema hasta el punto de que ambos, amantes de la ópera, interpretaron la bufonada que un músico amigo les regaló, y participaron como figurantes en varias representaciones del Teatro Nacional de Washington. El libreto al que pertenece la frase que introduce este artículo encerraba un mensaje explícito: “Somos diferentes.Somos uno”.

É muito interessante que muitos obituários recordem esta ópera que juntava os dois chefes de fila dos dois sectores do Supremo Tribunal, e sempre o façam para recordar que apesar de divergirem profundamente nunca deixaram não só de se respeitar como de ser amigos – amigos de casa. De resto é precisamente com esta ópera que a The Economist abre o seu texto sobre Ruth Bader Ginsburg, The liberal conscience of America’s Supreme Court: “In the evening of July 11th 2015, Ruth Bader Ginsburg went to the opera. There was nothing odd in that. Opera, after the law, was her great love, the only place where she could leave the legal world behind. (…) This particular opera, however, “Scalia/Ginsburg”, by Derrick Wang, was about her. It featured Antonin Scalia, then the court’s most scathing conservative, and she, its most notorious liberal, duelling musically in the styles of Mozart, Verdi and Puccini. He had to go through various trials; she helped him out, at one point soaring through a glass ceiling in the character of the Queen of the Night from “The Magic Flute”. She loved it all. She and Scalia, despite the legal zingers he tossed in her direction, had been best buddies since their days together on the DC federal appeals court in the 1980s. And America’s highest court could be just as dramatic, even if more sombrely arrayed.”

Não é habitual enviar-vos esta newsletter no início da semana, e na verdade ela foi escrito para ser enviada na sexta-feira, mas acabou por “ficar no estaleiro” pelo que, com pequenas adaptações, segue hoje pois o tema, na minha perspectiva, não perdeu actualidade. É certo que durante o fim-de-semana a actualidade evoluiu – já temos uma candidata ao preenchimento da vaga no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Amy Coney Barrett – mas isso não deve prejudicar aquilo que pretendia com este Macroscópio. E sendo certo que a partir daqui, como explicou o João de Almeida Dias em vai ser a discussão sobre quem sucederá a Ruth Bader Ginsburg – que morreu a 19 de Setembro aos 87 anos – que dominará a campanha nos Estados Unidos, o que pretendia era precisamente evitar essa discussão e centrar-me na figura e no legado da juíza que durante 27 anos ocupou uma das nove cadeiras do mais importante tribunal dos Estados Unidos. A todos os títulos ela merece e, nos tempos de tribalismo que vivemos, o seu exemplos também deve ser recordado.

Antes de lá irmos é bom termos presente a importância que o Supremo Tribunal tem no sistema constitucional dos Estados Unidos e na forma como nele se equilibram – no fundo como se dividem e controlam – os poderes. Os juízes são nomeados sem limite de mandato e como a Constituição dos Estados Unidos é muito curta, compete-lhes interpretá-la e isso dá-lhes um enorme poder. O equilíbrio entre juízes mais conservadores (ou mais de direita) e mais liberais (ou mais de esquerda) tem variado ao longo das décadas, sendo que houve juízes que evoluíram nas suas posições já depois de terem sido nomeados para o tribunal, uns tornando-se mais conservadores, outros mais liberais. O que o equilíbrio de forças nesse tribunal pode significar para o futuro dos Estados Unidos está bem sintetizado neste artigo de Russel Berman na The Atlantic, What Ruth Bader Ginsburg’s Death Means for America.

Mas vamos ao que interessa, Ruth Bader Ginsburg, alguém cuja vida e a carreira profissional como jurista é bem o exemplo do sonho americano, como escrevia Miguel Monjardino no Expresso, em Ginsburg e o mapa da América: “O pai, contabilista, emigrou de Odessa; a mãe nasceu pouco depois de a sua família ter imigrado da Polónia. “Qual é a diferença entre um contabilista de Broo­klyn e uma juíza do Supremo Tribunal?”, perguntou em tempos . “Uma geração”, foi a sua resposta.”

Ginsburg, conhecida pela sigla RBG, popularizada como a “notável RBG”, tornara-se nos últimos anos um ícone da esquerda americana por liderar a ala liberal do tribunal, o que não deixa de ser um sinal dos tempos ara alguém que nestes tempos de polarização se definia como moderada e independente. Por isso é por aí que começo e por um texto que não é de nenhum jornal americano, mas do espanhol El Pais: Somos diferentes. Somos uno. Escrito pelo fundador do diário madrileno, Juan Luis Cebrián, nele sublinha-se preisamente que “En la hora de los elogios y la admiración a la jueza Ginsburg no estaría de más que nuestros políticos de uno y otro signo aprendieran de su ejemplo y sabiduría. Aunque sus simpatías estaban con el Partido Demócrata, nunca se consideró a sí misma conservadora o liberal, sino independiente, y defendió la moderación y el compromiso, la apelación y el respeto a ley como la mejor manera de garantizar la convivencia y la paz. (…) Sus severas diferencias con los jueces conservadores y su jefe de filas, Antonin Scalia, no la impidieron votar muchas veces a su lado cuando consideraba que las decisiones a tomar eran justas. Y lejos de producir una animadversión personal generaron una complicidad extrema hasta el punto de que ambos, amantes de la ópera, interpretaron la bufonada que un músico amigo les regaló, y participaron como figurantes en varias representaciones del Teatro Nacional de Washington. El libreto al que pertenece la frase que introduce este artículo encerraba un mensaje explícito: “Somos diferentes. Somos uno”.

É muito interessante que muitos obituários recordem esta ópera que juntava os dois chefes de fila dos dois sectores do Supremo Tribunal, e sempre o façam para recordar que apesar de divergirem profundamente nunca deixaram não só de se respeitar como de ser amigos – amigos de casa. De resto é precisamente com esta ópera que a The Economist abre o seu texto sobre Ruth Bader Ginsburg, The liberal conscience of America’s Supreme Court: “In the evening of July 11th 2015, Ruth Bader Ginsburg went to the opera. There was nothing odd in that. Opera, after the law, was her great love, the only place where she could leave the legal world behind. (…) This particular opera, however, “Scalia/Ginsburg”, by Derrick Wang, was about her. It featured Antonin Scalia, then the court’s most scathing conservative, and she, its most notorious liberal, duelling musically in the styles of Mozart, Verdi and Puccini. He had to go through various trials; she helped him out, at one point soaring through a glass ceiling in the character of the Queen of the Night from “The Magic Flute”. She loved it all. She and Scalia, despite the legal zingers he tossed in her direction, had been best buddies since their days together on the DC federal appeals court in the 1980s. And America’s highest court could be just as dramatic, even if more sombrely arrayed.”

Este posicionamento não impediu que Ginsburg se afirmasse, como escreveu o Guardian, como uma “champion of women’s rights”: “In her 27 years on the supreme court bench, she was a consistent moderate liberal. Her role as the senior liberal justice, after 2010, became increasingly important as the balance of opinion shifted in the court, and her scathing dissents on conservative majority decisions, particularly on women’s rights, made her a celebrated figure on the left.” (—) “In recent years Ginsburg was treated, as one New Yorker writer said, as “a pop culture feminist icon, a comic book superhero”. She was formidably clever, and had in her youth almost superhuman capacity for work. But what made her historically so important was her clear conviction of the injustice of unequal treatment of women, and her absolute certainty that it could be cleansed by applying the constitution.”

Não tendo sido a primeira mulher a chegar ao Supremo Tribunal, foi a primeira a afirmar-se como feminista, algo que o Politico recorda no seu obituário – A tireless advocate for gender equality, she became known as “The Notorious RBG” for her barbed dissents – onde transcreve uma famosa passagem do seu testemunho de 1993 perante o Senado, durante as audições para a aprovação da sua nomeação: “Race discrimination,” Ginsburg said at her confirmation hearing in 1993, “was immediately perceived as evil, odious and intolerable.But the response that I got from the judges before whom I argued when I talked about sex discrimination was: ‘What are you talking about? Women are treated ever so much better than men.’”

Aliás inicialmente houve quem pusesse em causa o seu feminismo pois eram conhecidas as suas críticas ao famoso acórdão Roe v. Wade que legalizou o aborto nos Estados Unidos em 1973. É um tema que ela discutiu nessas audições perante o Senado, como recorda Stephen Daisley da Spectator, em The ‘Notorious RBG’ and her triumph over tribalism, num texto onde sublinha a sua preocupação com o papel do Tribunal: “Her constitutional jurisprudence was evolutionist but she was a stickler for precedent and sometimes a progressive voice for judicial restraint, most famously in her critiques of Roe v. Wade, the 1973 decision that stumbled across a right to abortion hidden in the Fourteenth Amendment. Ginsburg was an implacable supporter of abortion rights – becoming the first Supreme Court nominee to affirm that position in her confirmation hearing – but she lamented the Roe court’s decision ‘to fashion a regime blanketing the subject, a set of rules that displaced virtually every state law then in force’. Had the Court merely struck down the Texas statute at issue, rather than producing such a sweeping opinion, it ‘might have served to reduce rather than to fuel controversy’.”

É assim que que não surpreende que Ginsburg tenha recebido palavras elogiosas também de órgãos de informação de orientação conservadora, como o Wall Street Journal, que em a Pioneering Justice on Supreme Court recordou que “Cast by seniority to lead the high court’s liberal bloc, Justice Ginsburg spent her last years on the bench pushing back against an emboldened conservative majority, sometimes winning surprise victories or mitigating expected defeats by peeling off a vote from conservatives including Chief Justice Roberts and Justices Anthony Kennedy, Neil Gorsuch or Brett Kavanaugh.” É este jornal que recorda uma importante entrevista de Ruth Bader Ginsburg em que esta dá a sua visão da Constituição dos Estados Unidos, sendo especialmente interessante esta passagem: “The genius of this Constitution is that, over the course of now more than two centuries, ‘We the people’ has become more and more inclusive,” she said in a 2014 interview with The Wall Street Journal. “So it includes people whose ancestors were held in human bondage. It includes Native Americans, who were not part of ‘We the people,’” when the charter was ratified, she added.

Termino com a remissão para o mais completo dos obituários, o de Linda Greenhouse no New York Times, em que a define com a Feminist Icon, e que para além de dar uma ideia bastante detalhada do que foi a sua vida tem uma descrição bastante pormenorizada de muitas das suas sentenças, designadamente de textos em que votou vencida, mas textos a que dava tanta atenção como se fossem as deliberações vencedoras pois sabia que também eles faziam jurisprudência e podiam influenciar – e por vezes influenciaram – futuras decisões dos órgãos legislativos. Desse texto do New York Times começo por retomar uma passagem sobre a forma como encarava o acórdão Roe v. Wade, por revelar melhor o modo como achava que o Tribunal se devia relacionar com a sociedade e os diferentes poderes políticos: “Judge Ginsburg’s anomalous role as what might be called a judicial-restraint liberal sprang from deep convictions that in a healthy democracy, the judicial branch should work in partnership with the other branches, rather than seek to impose a last word that left no room for further discussion.This was the basis for her criticism of Roe v. Wade, the Supreme Court’s 1973 decision establishing a constitutional right to abortion. In a speech at New York University Law School in 1993, several months before her nomination to the Supreme Court, she criticized the ruling as having “halted a political process that was moving in a reform direction and thereby, I believe, prolonged divisiveness and deferred stable settlement of the issue.”

E finalize com a referência feita à importância que dava mesmo às suas opiniões minoritárias, pois tomo-a como indicador de todas as opiniões são importantes: “Justice Ginsburg took care with her opinions, those for the majority as well as those in dissent.Her opinions were tightly composed, with straightforward declarative sentences and a minimum of jargon. (…) Still, it was her dissents, particularly those she announced from the bench, that received the most attention. Playing along with her crowd, she took to switching the decorative collars she wore with her judicial robe on days when she would be announcing a dissent.”

(in Observador  José Manuel Fernandes, Publisher
newsletters@observador.pt 28 setembro 2020)

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