quinta-feira, 2 de junho de 2011

O vocábulo "Arruada"

               
"[Pergunta
Resposta]

O vocábulo arruada

[Pergunta] A propósito da presente campanha presidencial em Portugal, tenho ouvido na rádio o neologismo "arruada" (no sentido de passeata eleitoral dos candidatos e suas comitivas em determinados pontos desta ou daquela cidade) que não vejo abonado nos dicionários. O da Academia das Ciências de Lisboa regista apenas o verbo arruar («andar pelas ruas, geralmente sem destino», o mesmo que «vadiar», na abonação mais próxima do sentido em apreço) – mas não o substantivo "arruada". O que acha o Ciberdúvidas?


João Carlos Araújo :: :: Lisboa, Portugal

[Resposta] Arruada não está, de facto, dicionarizada, mas não é absolutamente certo que se trate de neologismo, porque, como se verá, ela tem sido usada sistemática ou pontualmente em certos contextos.1 Para já, pode-se afirmar que é palavra bem formada, atestada ou disponível de forma latente no léxico português. Assim, pode ser encarada como um derivado do verbo arruar (ver Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, também conhecido por Dicionário da Academia), que, entre outras acepções, significa genericamente «passear na rua, vadiar», podendo ainda sugerir que a acção referida é ostensiva ou provocatória. Arruada torna mais saliente a ideia de «andar pelas ruas», que já se associava ao verbo, e relega para um plano semântico mais periférico a noção de «vadiagem».


Por seu turno, José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, regista um vocábulo muito próximo, arruado, que é adjectivo («dividido em ruas» e «que mora em bairro destinado a certos ofícios») e nome. Como nome, que é o aqui interessa, tem os seguintes significados: «distribuição em ruas» (sinó[ô]nimo de arruamento); «pequena povoação de casas à beira de uma estrada»; e «composição musical tocada por uma banda, enquanto percorre as ruas da cidade».


Penso que este último sentido e a própria configuração de arruado, muita próxima da palavra arruada, sugerem que esta, se não tem tido uso continuado, pode emergir para designar um grupo (humano ou não) e certo tipo de movimentação de rua, à semelhança de outros nomes terminados em -ada (sobre este sufixo, ver Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 96), como rapaziada, «grupo de rapazes ou de rapazes e raparigas», e garraiada, «corrida em que é utilizado um grupo de toiros novos» (cf. Dicionário da Academia).


A consulta do corpus CETEMPúblico, que reúne textos jornalísticos dos anos 90, mostra 21 ocorrências do vocábulo arruada. Os respe(c)tivos contextos parecem dar pistas sobre o desenvolvimento semântico da palavra:

(1) «Na Moita, histórico bastião do PCP onde o autarca José Luís Pereira dá lugar a João Almeida, o passeio, ou arruada na versão comunista, ficou marcado pela visita à Norporte, uma empresa de confecções.» (1997)

(2) «A arruada, como a CDU gosta de chamar às acções de campanha junto das populações, estava marcada para as 17h, mas só arrancou meia hora depois.» (1997)


Em (1) e (2) os jornalistas atribuem aos comunistas ou a organizações a eles ligadas a responsabilidade pelo uso de arruada com o sentido de «passeio» ou «manifestação de rua». Outras ocorrências indiciam que, a acompanhar, há também música ou um ambiente festivo.


O aparecimento ou o incremento do uso da palavra podem, por conseguinte, ser explicados de duas maneiras: arruada é uma forma possível em português, derivada do verbo arruar, por sua vez, palavra parassintética cuja base é rua.

Outra hipótese é a de que a palavra já existe como regionalismo; e há dados que apontam para isso. Com efeito, foi possível encontrar a forma “ruada” não em português, mas em galego, língua que tem enorme utilidade para a identificação de termos regionais, sobretudo do Norte de Portugal. A versão em linha do Diccionario da Real Academía Galega define a palavra como «Reunión de xente, polo xeral pola noite, para divertirse con cántigas, bailes, etc. Polo Entroido facemos unha ruada na casa de seus curmáns […] 2. Percorrido que fan os mozos polas rúas bailando e botando serenatas. Os sábados imos de ruada polo lugar, ás casas das mozas» (itálico do original a negro). Nesta língua, há também o verbo “ruar” («Andar polas rúas paseando, enredando, etc. Os nenos levan toda a tarde fóra da casa a ruar» — itálico do original a negro). É certo que as formas galegas não apresentam o a- protético das portuguesas, mas é inegável que há um forte paralelo semântico, sobretudo pela dimensão ligada ao divertimento. Esta transparece na acepção com que o termo arruada foi ou tem sido usado pelas tunas acadé[ê]micas portuguesas, permitindo afirmá-las lingu[ü]isticamente perante o "pasacalle" das suas congéneres espanholas (comunicação pessoal de Rui Gouveia).

Mesmo assim, saber se os termos galegos estão directamente ligados ao português arruar é um tanto difícil, uma vez que, se em ambas as línguas os resultados da derivação sobre rua parecem semelhantes, os respectivos processos podem ter actuado separadamente, antes sugerindo a convergência entre línguas hoje independentes, mas ainda muito próximas.

Em conclusão, penso que a forma arruada é palavra correcta, não só na perspectiva da sua morfologia, mas também na da sua semântica. Basta relembrar que num verbo com ela relacionado, arruar, já existem traços semânticos que permitem o desenvolvimento da acepção atribuída a esta palavra. Além disso, há dados que indicam que o uso de arruada, se não é muito antigo, já tem tradição, apesar de ser palavra que os dicionários consultados não registam.


1 Esta resposta viu algumas passagens reformuladas na sequência de um comentário enviada pelo consulente Henrique Oliveira (Linda-a-Velha, Portugal), a quem agradeço a seguinte achega:

«O termo "arruada" é utilizado desde há muito para designar a acção de um grupo de músicos tocando no exterior, percorrendo as ruas tocando os instrumentos musicais. Desde há muitos anos em relação aos grupos de gaiteiros e também, por exemplo, nas bandas filarmónicas. Encontra-se registado, por exemplo, nos trabalhos de recolha de Michel Giacometti, nos anos 60 e 70, nos trabalhos de Armando Leça, desde a década de 20, e em documentos do século XIX e anteriores.»
Carlos Rocha :: 12/01/2006"

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