José António Saraiva, 28Mai2014
(in http://www.sol.pt/Mobile/noticia/106632)
Tenho
escrito com alguma frequência sobre os sinais de decadência da
civilização ocidental. Foi uma civilização que engordou, aburguesou-se e
perdeu o nervo. Esses sinais de decadência são, em geral, comuns a
outras civilizações em iguais períodos. No declínio do Império Romano
verificaram-se muitos dos sintomas que hoje observamos nos corpos
doentes das nossas sociedades: sobrevalorização do prazer em detrimento
do dever, explosão dos sentidos, confusão de valores, desaparecimento de
referências, ausência de ojectivos colectivos, avanço da
homossexualidade, instabilidade familiar, etc. Quando abrimos a TV, há
uma frase que se ouve constantemente nos programas de grande audiência:
"Isto é superdivertido!". O mais importante nos dias de hoje é ser
'superdivertido'.
O
último sinal deste trajecto descendente do nosso mundo foi o último
Festival Eurovisão da Canção, onde uma mulher com barba - uma cantora
com nome de homem ou vice-versa - saiu vencedora. A impressão causada
foi de confusão total. E mesmo quem, de espírito aberto, se dispusesse a
perceber o que estava a acontecer, deve ter tido a sensação de que tudo
está a andar depressa demais.
Uma mulher com barba ganhar o eurofestival? Será possível?
E
qual terá sido o objectivo de quem criou tão insólita figura - e,
sobretudo, de quem a premiou? Dizer que o género não existe? Que homem e
mulher tendem a fundir-se num ser sem género, nem homem nem mulher?
Pensar nisto recorda-me, vá lá saber-se porquê, uns animais híbridos que
são produto dos cruzamentos entre os cavalos e os burros. Chamam-se
'machos' e 'mulas', e não podem reproduzir-se porque são estéreis. Mas
se a mensagem 'filosófica' do eurofestival foi essa, então estamos
perante uma manifestação de nihilismo, de desesperança, de anúncio do
fim dos tempos. Claro que isto não teria qualquer importância e seria
levado à conta de brincadeira se tivesse acontecido num qualquer
festival alternativo ou num concurso promovido por canais de televisão
tipo SIC Radical. Mas o que causa perplexidade é ter ocorrido num
concurso organizado por estações de referência e contar com os votos de
350 milhões de telespectadores. Parece que o culto do absurdo, que até
pouco era apanágio de minorias que desafiavam o status quo, se tornou
subitamente um fenómeno de massas. E isso assusta. Que as minorias sejam
respeitadas (e até acarinhadas), é saudável. Que as minorias ocupem
subitamente o palco e transformem as suas práticas minoritárias em
hábitos correntes, tal constitui um sinal muito perigoso pois conduz
directamente à perda de referências.
O
que pensará uma criança de cinco anos ao ver no ecrã da sua televisão
uma mulher com barba a cantar num palco iluminado, aplaudida por
milhares de pessoas?
Repetem
os apoiantes da mulher barbuda que se tratou de uma demonstração de
liberdade, para mostrar que toda a gente pode fazer o que quer desde que
não interfira com a liberdade do outro. A questão da liberdade não é
assim tão simples. Um dia destes, um canal transmitia um programa sobre
nudistas em que um deles protestava porque o padre da aldeia não os
deixava entrar nus na igreja. E dizia que isso era uma manifestação de
"mentalidade medieval", acrescentando, porém, que havia cada vez menos
pessoas assim. Esta última frase vai ao encontro do apoio à mulher
barbuda. Todas as sociedades vivem de convenções, de regras não escritas
mas comummente aceites. Quando essa base estala, sucede-se a confusão e
o caos.
Enquanto
a farsa do eurofestival sucedia do lado de cá, do outro lado da antiga
'Cortina de Ferro' o senhor Putin, um homem gelado e sem escrúpulos,
sorria. Mais tarde, o vice-presidente do Parlamento, Vladimir
Zhirinovsky, diria: "Eles já não têm homens e mulheres. Têm 'aquilo'.
Libertámos a Áustria há 50 anos mas não o devíamos ter feito". Nós
rimo-nos desta frase. Mas não devíamos fazê-lo. É muito perigoso rir dos
nossos inimigos. Sobretudo quando são poderosos.
Vladimir
Putin assiste aos sinais de decadência da Europa ocidental e nós vamos
dando-lhe razões para sorrir. Quando os ucranianos reclamam pela ligação
ao Ocidente, quando denunciam o imperialismo russo, o
vice-primeiro-ministro da Rússia, Dmitry Rogozin, responde: "[O
eurofestival] mostrou aos que defendem a integração europeia o seu
futuro europeu: uma rapariga de barba".
Esta
vitória de uma drag queen no maior festival europeu de música ligeira
foi um inesperado presente que a Europa deu aos russos no momento em que
se discute a Crimeia e o futuro da Ucrânia. Porque do lado de lá
presta-se ao ridículo e do lado de cá enfraquece a opinião pública.
Muitos europeus, sobretudo os conservadores mas não só, começam a
duvidar dos caminhos por onde isto vai - e a olhar com um misto de
inveja e receio para o lado de lá, onde há ordem, autoridade e ainda não
se confundem os sexos…
A
democracia tornou-se uma barriga de aluguer onde estão a germinar todas
as sementes da sua destruição. A indisciplina nas escolas; a
dificuldade que a Justiça revela de punir e condenar os culpados; a luta
política constante e desgastante, dificultando a identificação de
objectivos nacionais; a generalização do consumo de drogas; a perda de
uma base de regras comummente aceites - tudo isto se volta contra a
democracia e a enfraquece. Em vez de se fortalecer, de se enrijar com o
tempo, a democracia vai-se desfazendo, como a madeira corroída pelo
caruncho. O regime democrático já não tem nada a que se agarrar para lá
do voto - e aí as coisas também não estão bem, pois a abstenção é cada
vez maior.
E
isto não é um problema dos governos, nem dos défices, nem da
austeridade, nem dos cortes de salários e pensões, nem de nada disso.
Aliás, a senhora Merkel - educada no Leste - é que tem, ainda assim,
posto alguma ordem no convento. Caso contrário, o regabofe seria maior:
cada país fazia o que queria, não havia controlo das contas nem de nada,
era a rebaldaria completa.
Por
razões de vária ordem, eu tive uma educação bastante avançada para o
seu tempo. Depois de acabar o liceu, tirei o curso superior numa Escola
de Belas-Artes onde o ambiente era muito permissivo, recheado de
candidatos e candidatas a 'artistas', com todos os sinais exteriores que
poderão imaginar-se. Quando ainda estudava, comecei a trabalhar num
ateliê de arquitectura (liderado pelo arquitecto Manuel Tainha) onde
todos abraçávamos entusiasticamente as correntes modernistas. E depois
dirigi durante mais de duas décadas um jornal (o Expresso) onde o
ambiente era efervescente. Convivi permanentemente com a modernidade e
pratiquei-a, conheci muita gente à frente do seu tempo. Vi e li muito.
E, no entanto, se me dissessem que uma cantora com barba ia ganhar um
dia o Festival da Eurovisão, eu consideraria isso uma completa
impossibilidade.
Julgo
que muita gente que vai atrás destes fenómenos, que abraça sofregamente
o politicamente correcto, não o faz por convicção mas por medo de
parecer antiquada, old fashion, bota-de-elástico. Ninguém quer parecer
mal. É sempre a história do rei vai nu. Como sucedeu neste caso, a
sociedade ocidental pode pôr-se subitamente a representar uma peça de
Ionesco pensando que é a própria realidade.
A
explosão dos media, do online, das redes sociais, faz-nos viver
aceleradamente tempos perigosos. Entrou-se noutra dimensão. Os fenómenos
de imitação, por mais absurdos que por vezes se apresentem, alastram
como fogo em palha. Embora eu não seja católico, perante esta vitória
de uma mulher barbuda num festival organizado pelos canais ditos
'sérios' e emitido em canal aberto no horário nobre das televisões, só
me ocorre dizer: "Valha-nos Deus!".
imagem obtida em: caras.sapo.pt |
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