Eduardo Febbro é um Jornalista argentino, nascido em 1956. Trabalha na redação da Rádio France Internationale e é correspondente para o jornal Página 12 em Paris.
A história secreta da renúncia de Bento XVI
O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.
Paris
- Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI
decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem
ao México e a Cuba.
Naquele
momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des
Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama “uma
continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um
informe elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais
nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras
fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre
facções, lavagem de dinheiro.
O
Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites
nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações,
traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas
prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.
Muito
longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de
Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph
Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres
pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas.
Bento
XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João
Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando
vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da
libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da
doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto
fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos
citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão
reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas
do mundo moderno.
O
Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003,
tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um
dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da verdade”.
Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente.
Depois
do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do
papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria
qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para
isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei
e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox.
Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha
ideia é trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há
nada de claro na cúpula da igreja católica.
A
divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo
do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma
operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos:
operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone,
conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um
italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de
segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a
Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de
redesenhar.
Bento
XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas
são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas
da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a
figura do Papa.
Não
é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu
consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os
partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e,
por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada
que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de
ultradireita do mundo.
Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira.
Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira.
O
Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que
surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o
dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João
Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.
Em
setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi
para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR),
o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco
Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação
da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa
Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e
propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial.
Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do
Vaticano.
As
contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro
cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a
justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo
norteamericano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente
do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.
João
Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para
evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia
muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não
contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade,
algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais.
Marcinkus
terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, no meio de um gigantesco
buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários
cadáveres.
No
dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de
Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do
Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de
corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica
Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o
próprio IOR de Marcinkus.
Ettore
Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três
anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por
supostas “irregularidades” em sua gestão.
Tedeschi
saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa,
justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por
suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro.
Na
verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra
entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a
elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas
secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários,
construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina
Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no
IOR por meio de laranjas.
Aí
começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o
banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros
do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um
inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que
fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada
pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento de
documentos roubados do papa.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção.
A
hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de
decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos:
corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de
poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo
pontual e decadente da própria decadência do sistema.
Tradução: Katarina Peixoto
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