sexta-feira, 29 de setembro de 2017

"O menino e o caixote": um conto de Mário Henrique Leiria (escritor surrealista)

Mário Henrique Leiria nasceu em 1923, foi escritor e poeta, fez parte do grupo surrealista português.

É o autor de vários contos publicados nos Contos do Gin Tónico (1973) donde são extraídos os  Novos Contos do Gin e O menino e o caixote (1978). Neles, o fio condutor é o "fantástico". 

"Partiu" em 1980!

Vamos reler "O menino e o caixote":

in: http://www.bulhosa.pt

-Não pode ser - disse o senhor Sousa ao filho, o Ernestinho de oito anos.

-Mas, papá, eu vejo nos filmes. Todos têm - afirmou a criança, à procura de uma salvação para aquilo que lhe parecia um desejo certo.


-Onde é que já se viu um leão em casa? Só nessas fitas idiotas. E, além disso, o menino não vê que não há espaço? Para a semana arranjo-lhe um gato bonito, daqueles que bebem leitinho e fazem miau. 

O Ernestinho desistiu de convencer o pai. Para quê? Era um homem com bigode, sempre a explicar o que não era preciso. Nem sequer percebia de leões.

Sentou-se no chão a pensar. Com certeza que devia haver um leão, ali em casa!

Não era a vassoura atrás da porta, nem a cadeira larga da mãe dormir aos domingos, nem sequer o embrulho do lixo à espera de ser deitado fora. Foi investigar, toda a gente sabe que os leões estão onde menos se espera.

Na cozinha, lá ao fundo, estava o caixote vazio que trouxera as compras da Cooperativa. O Ernestinho pousou-lhe a mão, acariciou-o com ternura e um certo receio.

O caixote rugiu e sacudiu a areia amarela e antiga que lhe aquecia a juba. O menino puxou-o ao de leve, como quem ensina e acompanha, e o caixote seguiu-o, pisando firme.

O Ernestinho sentou-se no chão da sala. Entre o sofá e a mesinha da televisão o caixote ficava mesmo bem, confortável, como na caverna onde nascera e dera o primeiro rugido.


-Agora vamos caçar, Baluba - explicou o Ernestinho ao caixote.

-Que faz o meninho aí com esse caixote? - perguntou severamente o senhor Sousa, abrindo a porta, de sobrolho franzido.


O menino olhou para o pai, assustado, e depois para o seu amigo Baluba.

-Mata o velho, Baluba! - gritou, num desespero.


O leão saltou veloz e, com uma única dentada eficaz, arrancou a cabeça do senhor Sousa. 

Mário-Henrique Leiria (1923-1980), "Contos do Gin-Tonic", 1973
Podem folhear o livro AQUI
Watch the book HERE  "

Referência: in studentshow.com

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